por Thainá M.
(Foto: Divulgação)
Organize seu ódio.
Muito mais do que uma frase de efeito, essa sentença — tão comumente repetida entre militantes de esquerda — representa uma importante máxima nos movimentos de contestação do sistema. Significa transformar um sentimento individual e corrosivo — consequência das inúmeras injustiças e desigualdades a que grande parte da população é submetida — em uma potência coletiva, uma força de propulsão para a construção de um mundo diferente. Significa pensar que nossas indignações totalmente válidas não precisam se tornar uma espiral de angústia, ou nos transformar em uma casca fria que deixa de se importar pelo caminho, mas podem se tornar combustível de luta, quando direcionadas para ações que façam ruir os pilares de um sistema que provocou tais indignações.
Foi esse preceito que conduziu grande parte das ações de Hwang Dohee (Kim Heeae), uma das protagonistas de Queenmaker, drama político da Netflix, que estreou em abril deste ano. Em apenas onze episódios, mergulhamos de forma profunda nas águas turvas que escondem a simbiose entre os grandes conglomerados e as instituições políticas de um país, que agem em conjunto a fim de manter privilégios, explorar a classe trabalhadora e enriquecer quanto for possível, enquanto mantêm o poder político e manipulam a opinião pública. Dirigido por Oh Jinsuk — do também excelente My First First Love (2019) — e roteirizado por Moon Jiyoung, esse drama me impactou totalmente, não apenas pela abordagem — completamente honesta e crua — de temas que muito me interessam, mas pela condução impecável de uma trama complexa sem abrir mão do discurso potente e contestador do início ao fim.
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Hwang Dohee é líder da equipe de estratégia do poderoso Eunsung Group. Seu trabalho consiste em manter a imagem do conglomerado sem máculas, arquitetando alianças e utilizando de influência política e financeira para que os escândalos da família dirigente não afetem os interesses da chairwoman do grupo e matriarca da família, Son Youngsim (Seo Yisook). Seus métodos, embora sempre eficazes — e que constroem sua fama impecável —, nem sempre são éticos. Para o mundo dos poderosos, porém, a ética é apenas uma performance vazia e isso fica explícito durante todo o drama.
Para esconder um caso extraconjugal de Baek Jaemin (Ryu Sooyoung), genro de Son Youngsim, esposo de sua filha mais nova e quem a matriarca deseja alçar à carreira política, Dohee precisa se livrar de Han Yiseul (Han Chaekyung), uma secretária que se diz violentada pelo chefe e que exige minimamente uma responsabilização. O que parecia uma tarefa simples — buscar qualquer marca no passado da mulher que pudesse lhe causar descrédito e fazer uso disso para fazê-la se calar em um acordo injusto —, ganha contornos dramáticos quando Yiseul se joga do terraço de um dos edifícios da Eunsung logo depois de se encontrar com Dohee. Traumatizada, a líder da equipe de estratégia se culpa pela morte prematura da jovem e seus princípios, ora nublados pelo trabalho e pela lealdade à família que a emprega, já não podem mais sustentar tantas contradições.
É após esse fato que Dohee conhece Oh Kyungsook (Moon Sori) e o que parecia apenas mais uma tarefa que lhe fora designada, acaba por mudar completamente o curso de sua existência.
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Oh Kyungsook é uma advogada e ativista trabalhista, militante pelo direito das mulheres trabalhadoras e membro ativo nas associações de trabalhadores e trabalhadoras por direitos e por solidariedade de classe. Além de advogar pela causa — inúmeras vezes sem cobrar seus honorários —, Kyungsook participa dos protestos e das marchas no papel de liderança. Quando o grupo Eunsung demite em massa trabalhadoras temporárias de suas lojas de departamento, é a advogada quem assume a responsabilidade por um protesto corajoso: se isolar em um dos mais altos prédios do conglomerado, fazendo do terraço uma ocupação que denuncia o descaso dos mais ricos para com a vida das mulheres que vendem sua força de trabalho. Passando frio e privação alimentar, Kyungsook atualiza seus companheiros e companheiras por meio de seu canal no YouTube, entoando palavras de ordem e músicas de protesto para se manter firme na luta. Sua resistência passa a incomodar a chairwoman do grupo, que designa Dohee para expulsá-la das dependências da Eunsung e encerrar o protesto dos demais trabalhadores em frente ao edifício. Indo confrontá-la, Dohee não consegue dobrar a ativista. A próxima ordem de Son Youngsim é para resolver o assunto em definitivo e seus demais mandados entram em ação. Hwang Dohee sabe que pode ser o fim de Oh Kyungsook, e não apenas de seu protesto, e resolve intervir. Não existe mais espaço para mais uma morte em seu currículo.
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A vida das duas mulheres muda completamente a partir desse evento. Enquanto Hwang Dohee é demitida, sofrendo imediatamente as consequências de se recusar a executar uma ordem, Oh Kyungsook passa a ser nacionalmente conhecida pela bravura em seu protesto contra um conglomerado poderoso, passando a ser chamada de “rinoceronte da justiça”, por sua força e imagem, ainda que considerada desleixada, extremamente destemida.
A trama chega ao seu desenvolvimento central em seguida, mantendo um ritmo frenético e cheio de grandes reviravoltas e surpresas chocantes. Hwang Dohee aproveita a chegada do período de eleições para a prefeitura de Seul e faz uma proposta a Oh Kyungsook: quer lhe assessorar para lhe ajudar a chegar ao cargo de dirigente política da capital do país. Ela lhe assegura que sabe como fazê-la vencer.
Suas motivações, a princípio, são a vingança contra a família dirigente do grupo Eunsung — responsáveis por tantas desgraças, a nível pessoal e político — e, especialmente, impedir que Baek Jaemin — apadrinhado pelo conglomerado e um ególatra louco por poder — chegue ao cargo de maneira completamente manipulada.
Oh Kyungsook — que apesar de militante experiente, jamais disputou eleições formais —, desconfia das intenções de Dohee, mas seu senso de justiça e seu espírito de luta a impulsionam para a batalha brutal que começa em seguida.
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Atenção! A partir daqui os spoilers podem ser mais significativos!
Apesar do título, Queenmaker não é sobre as geniais ações individuais de uma especialista na construção de uma heroína política do povo. Mesmo mostrando, com maestria, como uma mulher é forçada a se moldar a certos parâmetros para não ser escorraçada de uma disputa — o que evidencia a importância do papel de Dohee —, o drama mostra como a organização coletiva em torno do objetivo de tornar Oh Kyungsook a próxima prefeita é que verdadeiramente move a trama. Ainda que a revolta individual de Hwang Dohee tenha impulsionado a candidatura da ativista, esse sentimento, a princípio próprio, é coletivizado e abraçado pelas companheiras e pelos companheiros de Kyungsook e pela equipe de voluntários que embarca nesse desafio com Dohee, todos motivados pela esperança de ver e apoiar uma representante comprometida com a emancipação dos menos favorecidos e dos subalternizados em uma sociedade capitalista.
O drama nos dá inúmeros exemplos dessa potência coletiva, que se apresenta nos detalhes de cenas belíssimas. Algumas das que mais me marcaram enquanto assistia, envolveram Kyungsook e suas companheiras de militância. Quando isoladas, encurraladas pelos adversários e precisando de apoio quando sequer acreditavam em si mesmas, seu impulso desesperado era entoar suas palavras de ordem, versos que reberveravam no ser político de luta umas das outras.
“Divididos, morremos
Hesitar é morrer
Vamos em frente como um só
Até o dia da vitória
Vou cumprir as promessas
Que fiz para meus camaradas
Ainda que partam minha cabeça
Unidos sob a bandeira do sindicato
Superamos a violência dos brutamontes
Unidos através de greves e lutas
Iremos em frente
Sob a bandeira da libertação”
(Tradução: Netflix Brasil)
O drama mostra, ainda, algo que sempre está presente em minhas reflexões pessoais e o fez de forma tão crua e verdadeira que me levou às lágrimas várias vezes. Além de todo o currículo já citado, Kyungsook também é esposa e mãe. Esses papéis, porém, por vezes são “negligenciados” em prol do dever coletivo e do sonho do mundo melhor. Quase ninguém conta como é pesado escolher — é realmente preciso? — entre dois âmbitos tão essenciais para nossa existência e como assumir a responsabilidade pela ausência é sufocante.
O marido de Kyungsook, o poeta Kang Moonbok (Hyun Bongshik), apoiou o trabalho e o ativismo da esposa desde sempre e fez o que pôde para suprir sua ausência em casa, por reconhecer sua luta como essencial para a sobrevivência de sua classe. O filho deles, o adolescente e estudante Kang Hyunwoo (Park Sanghoon), porém, tem dificuldades em aceitar o espaço, às vezes vazio, que sua mãe deixa em sua vida. Essa problemática, inclusive, é usada de forma covarde pelos adversários políticos de Kyungsook para macular sua imagem, taxá-la como mãe ausente e que sequer consegue educar um filho e prover um lar. Seu papel tão magnífico como militante é demonizado e seu trabalho como mãe é questionado de forma cruel, o que nos faz pensar como responsabilizamos as mães e as cobramos de forma sobre-humana.
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Todas essas nuances são apresentadas no drama de forma espetacular pelo seu elenco louvável. As atuações em Queenmaker são extraordinárias, e não apenas por parte do elenco principal, que conta com muitos artistas experientes e com extensa lista de trabalhos notáveis na TV e no cinema. Além da dupla de protagonistas — as sempre esplêndidas Kim Heeae e Moon Sori —, Seo Yisook, Yoon Jihye e Kim Saebyeok estão hipnóticas em seus papéis como membros da família proprietária do grupo Eunsung. Saebyeok, que assume o papel de filha mais nova da chaiwoman Son Youngshim, me deixou boquiaberta por inúmeras vezes. Queenmaker é, sobretudo, um drama sobre a excelência do trabalho feminino, não só no que tange o fictício.
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Com todos esses pontos citados, Queenmaker certamente está na minha lista de melhores do ano. Sou obcecada por dramas que conseguem ir além da fórmula de sucesso pronta — ainda que também ame os românticos clichês — e conseguem surpreender com uma mensagem coesa, forte e que nos força a reflexões muito pertinentes. Além disso, o entretenimento é completamente garantido pela estrutura de um drama político que apresenta a disputa pelo poder sem grandes censuras, com a minúcia de mostrar os escândalos, as mentiras, os crimes ao melhor estilo de “os fins justificam os meios” dos sem escrúpulos e o grande jogo de interesses entre os poderosos de diversos ramos.
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Por fim, o trunfo de Queenmaker é, para mim, ousar representar as frentes de contestação do sistema que existem na sociedade sul-coreana e, com uma disputa para um cargo político de administração pública, conseguir evidenciar o vigor das lutas coletivas por direitos, por mudanças nas estruturas sociais que alimentam as desigualdades inúmeras. Queenmaker nos mostra que o que nos une é maior do que fazem parecer quando tentam individualizar nossas demandas, e que não é preciso sentir ódio sozinho, é possível se organizar e coletivizar a luta hoje e sempre.
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